PARA ALÉM DO OUTRO OCEANO
DE COELHO PACHECO

«NUM SENTIMENTO de febre de ser para além doutro oceano
Houve posições dum viver mais claro e mais límpido
E aparências duma cidade de seres
Não irreais mas lívidos de impossibilidade, consagrados em pureza e em nudez
Fui pórtico desta visão irrita e os sentimentos eram só o desejo de os ter
A noção das coisas fora de si, tinha-as cada um adentro
Todos viviam na vida dos restantes
E a maneira de sentir estava no modo de se viver
Mas a forma daqueles rostos tinha a placidez do orvalho
A nudez era um silêncio de formas sem modo de ser
E houve pasmos de toda a realidade ser só isto
Mas a vida era a vida e só era a vida.

O meu pensamento muitas vezes trabalha silenciosamente
Com a mesma doçura duma máquina untada que se move sem fazer barulho
Sinto-me bem quando ela assim vai e ponho-me imóvel
Para não desmanchar o equilíbrio que me faz tê-lo desse modo
Pressinto que é nesses momentos que o meu pensamento é claro
Mas eu não o oiço e silencioso ele trabalha sempre de mansinho
Como uma máquina untada movida por uma correia
E não posso ouvir senão o deslizar sereno das peças que trabalham
Eu lembro-me às vezes de que todas as outras pessoas devem sentir isto como eu
Mas dizem que lhes dói a cabeça ou sentem tonturas
Esta lembrança veio-me como me podia vir outra qualquer
Como por exemplo a de que eles não sentem esse deslizar
E não pensam em que o não sentem

Neste salão antigo em que as panóplias de armas cinzentas
São a forma dum arcaboiço em que há sinais doutras eras
Passeio o meu olhar materializado e destaco de escondido nas armaduras
Aquele segredo de alma que é a causa de eu viver
Se fito na panóplia o olhar mortificado em que há desejos de não ver
Toda a estrutura férrea desse arcaboiço que eu pressinto não sei por quê
Se apossa do meu senti-la como um clarão de lucidez
Há som no serem iguais dois elmos que me escutam
A sombra das lanças de ser nítida marca a indecisão das palavras
Dísticos de incerteza bailam incessantemente sobre mim
Oiço já as coroações de heróis que hão de celebrar-me
E sobre este vício de sentir encontro-me nos mesmos espasmos
Da mesma poeira cinzenta das armas em que há sinais doutras eras
Quando entro numa sala grande e nua à hora do crepúsculo
E que tudo é silêncio ela tem para mim a estrutura duma alma
É vaga e poeirenta e os meus passos têm ecos estranhos
Como os que ecoam na minha alma quando eu ando
Por suas janelas tristes entra a luz adormecida de lá de fora
E projeta na parede escura em frente as sombras e as penumbras
Uma sala grande e vazia é uma alma silenciosa
E as correntes de ar que levantam pó são os pensamentos
Um rebanho de ovelhas é uma coisa triste
Porque lhe não devemos poder associar outras ideias que não sejam tristes
E porque assim é e só porque assim é porque é verdade
Que devemos associar ideias tristes a um rebanho de ovelhas
Por esta razão e só por esta razão é que as ovelhas são realmente tristes
Eu roubo por prazer quando me dão um objeto de valor
E eu dou em troca uns bocados de metal. Esta ideia não é comum nem banal
Porque eu encaro-a de modo diferente e não há relação entre um metal e outro objeto
Se eu fosse comprar latão e desse alcachofras prendiam-me
Eu gostava de ouvir qualquer pessoa expor e explicar
O modo como se pode deixar de pensar em que se pensa que se faz uma coisa
E assim perderia o receio que tenho de que um dia venha a saber
Que o pensar eu em coisas e no pensar não passa duma coisa material e perfeita
A posição dum corpo não é indiferente para o seu equilíbrio
E a esfera não é um corpo porque não tem forma
Se é assim e se todos ouvimos um som em qualquer posição
Infiro que ele não deve ser um corpo
Mas os que sabem por intuição que o som não é um corpo
Não seguiram o meu raciocínio e essa noção assim não lhes serve para nada
Quando me lembro que há pessoas que jogam as palavras para fazerem espírito
E se riem por isso e contam casos particulares da vida de cada um
Para assim se desenfastiarem e que acham graça aos palhaços de circo
E se incomodam por lhes cair uma nódoa de azeite no fato novo
Sinto-me feliz por haver tanta coisa que eu não compreendo
Na arte de cada operário vejo toda uma geração a esbater-se
E por isso eu não compreendo arte nenhuma e vejo essa geração
O operário não vê na sua arte nada duma geração
E por isso ele é operário e conhece a sua arte
O meu físico é muitas vezes causa de eu me amargurar
Eu sei que sou uma coisa e porque não sou diferente de uma coisa qualquer
Sei que as outras coisas serão como eu e têm de pensar que eu sou uma coisa comum
Se portanto assim é eu não penso mas julgo que penso
E esta maneira de me eu acondicionar é boa e alivia-me
Eu amo as alamedas de árvores sombrias e curvas
E ao caminhar em alamedas extensas que o meu olhar afeiçoa
Alamedas que o meu olhar afeiçoa sem que eu saiba como
Elas são portas que se abrem no meu ser incoerente
E são sempre alamedas que eu sinto quando o pasmo de ser assim me distingue
Muitas vezes oculto-me sensações e gostos
E então elas variam e estão em acordo com as dos outros
Mas eu não as sinto e também não sei que me engano
Sentir a poesia é a maneira figurada de se viver
Eu não sinto a poesia não porque não saiba o que ela é
Mas porque não posso viver figuradamente
E se o conseguisse tinha de seguir outro modo de me acondicionar
A condição da poesia é ignorar como se pode senti-la
Há coisas belas que são belas em si
Mas a beleza íntima dos sentimentos espelha-se nas coisas
E se elas são belas nós não as sentimos
Na sequência dos passos não posso ver mais que a sequência dos passos
E eles seguem-se como se eu os visse seguirem-se realmente
Do fato deles serem tão iguais a si mesmo
E de não haver uma sequência de passos que o não seja
É que eu vejo a necessidade de nos não iludirmos sobre o sentido claro das coisas
Assim havíamos de julgar que um corpo inanimado sente e vê diferentemente de nós
E esta noção pode ser admissível demais seria incómoda e fútil
Se quando pensamos podemos deixar de fazer movimento e de falar
Para que é preciso supor que as coisas não pensam
Se esta maneira de as ver é incoerente e fácil para o espírito?
Devemos supor e este é o verdadeiro caminho
Que nós pensamos pelo fato de o podermos fazer sem nos mexermos nem falar
Como fazem as coisas inanimadas
Quando me sinto isolado a necessidade de ser uma pessoa qualquer surge
E redemoinha em volta de mim em espirais oscilantes
Esta maneira de dizer não é figurada
E eu sei que ela redemoinha em volta de mim como uma borboleta em volta de uma luz
Vejo-lhe sintomas de cansaço e horrorizo-me quando julgo que ela vai cair
Mas de nunca suceder isso acontece eu estar às vezes isolado
Há pessoas a quem o arranhar das paredes impressiona
E outras que se não impressionam
Mas o arranhar das paredes é sempre igual
E a diferença vem das pessoas. Mas se há diferença entre este sentir
Haverá diferença pessoal no sentir das outras coisas
E quando todos pensem igual duma coisa é porque ela é diferente para cada um
A memória é a faculdade de saber que havemos de viver
Portanto os amnésicos não podem saber que vivem
Mas eles são como eu infelizes e eu sei que estou vivendo e hei de viver
Um objeto que se atinge um susto que se tem
São tudo maneiras de se viver para os outros
Eu desejaria viver ou ser adentro de mim como vivem ou são os espaços
Depois de comer quantas pessoas se sentam em cadeiras de balanço
Ajeitam-se nas almofadas fecham os olhos e deixam-se viver
Não há luta entre o viver e a vontade de não viver
Ou então — e isto é horroroso para mim — se há realmente essa luta
Com um tiro de pistola matam-se tendo primeiro escrito cartas
Deixar-se viver é absurdo como um falar em segredo
Os artistas de circo são superiores a mim
Porque sabem fazer pinos e saltos mortais a cavalo
E dão os saltos só por os dar
E se eu desse um salto havia de querer saber por que o dava —
E não os dando entristecia-me
Eles não são capazes de dizer como é que os dão
Mas saltam como só eles sabem saltar
E nunca perguntaram a si mesmos se realmente saltam
Porque eu quando vejo alguma coisa
Não sei se ela se dá ou não nem posso sabê-lo
Só sei que para mim é como se ela acontecesse porque a vejo
Mas não posso saber se vejo coisas que não aconteçam
E se as visse também podia supor que elas sucediam
Uma ave é sempre bela porque é uma ave
E as aves são sempre belas
Mas uma ave sem penas é repugnante como um sapo
E um montão de penas não é belo
Deste fato tão nu em si não sei induzir nada
E sinto que deve haver nele alguma grande verdade
O que eu penso duma vez nunca pode ser igual ao que eu penso doutra vez
E deste modo eu vivo para que os outros saibam que vivem
Às vezes ao pé dum muro vejo um pedreiro a trabalhar
E a sua maneira de existir e de poder ser visto é sempre diferente do que julgo
Ele trabalha e há um incitamento dirigido que move os seus braços
Como é que acontece estar ele trabalhando por uma vontade que tem disso
E eu não esteja trabalhando nem tenha vontade disso
E não possa ter compreensão dessa possibilidade?
Ele não sabe nada destas verdades mas não é mais feliz do que eu com certeza
Em áleas doutros parques pisando as folhas secas
Sonho às vezes que sou para mim e que tenho de viver
Mas nunca passa este ver-me de ilusão
Porque me vejo afinal nas áleas desse parque
Pisando as folhas secas que me escutam
Se pudesse ao menos ouvir estalar as folhas secas
Sem ser eu que as pisasse ou sem que elas me vissem
Mas as folhas secas redemoinham e eu tenho de as pisar
Se ao menos nesta travessia eu tivesse um outro como toda a gente
Uma obra-prima não passa de ser uma obra qualquer
E portanto uma obra qualquer é uma obra-prima
Se este raciocínio é falso não é falsa a vontade
Que eu tenho de que ele seja de fato verdadeiro
E para os usos do meu pensar isso me basta
Que importa que uma ideia seja obscura se ela é uma ideia
E uma ideia não pode ser menos bela do que outra
Porque não pode haver diferença entre duas ideias
E isto é assim porque eu vejo que isto tem de ser assim
Um cérebro a sonhar é o mesmo que pensa
E os sonhos não podem ser incoerentes porque não passam de pensamentos
Como outros quaisquer. Se vejo alguém olhando-me
Começo sem querer a pensar como toda a gente
E é tão doloroso isso como se me marcassem a alma a ferro em brasa
Mas como posso eu saber se é doloroso marcar a alma a ferro em brasa
Se um ferro em brasa é uma ideia que eu não compreendo
O descaminho que levaram as minhas virtudes comove-me
Compunge-me sentir que posso notar se quiser a falta delas
Eu gostava de ter as minhas virtudes gostosas que me preenchessem
Mas só para poder gozar e possuí-las e serem minhas essas virtudes
Há pessoas que dizem sentir o coração despedaçado
Mas não entrevistam sequer o que seria de bom
Sentir despedaçarem-nos o coração
Isso é uma coisa que se não sente nunca
Mas não é essa a razão por que seria uma felicidade sentir o coração despedaçado
Num salão nobre de penumbra em que há azulejos
Em que há azulejos azuis colorindo as paredes
E de que o chão é escuro e pintado e com passadeiras de juta
Dou entrada às vezes coerente por demais
Sou naquele salão como qualquer pessoa
Mas o sobrado é côncavo e as portas não acertam
A tristeza das bandeiras crucificadas nos entrevãos das portas
É uma tristeza feita de silêncio desnivelada
Pelas janelas reticuladas entre a luz quando é dia
Que entorpece os vidros das bandeiras e recolhe a recantos montões de negrume
Correm às vezes frios ventosos pelos extensos corredores
Mas há cheiro a vernizes velhos e estalados nos recantos dos salões
E tudo é dolorido neste solar de velharias
Alegra-me às vezes passageiramente pensar que hei de morrer
E serei encerrado num caixão de pau cheirando a resina
O meu corpo há de derreter-se para líquidos espantosos
As feições desfar-se-ão em vários podres coloridos
E irá aparecendo a caveira ridícula por baixo
Muito suja e muito cansada a pestanejar»

FIM

DE "PARA ALÉM DOUTRO OCEANO DE COELHO PACHECO"

(1) Pacheco é um episódio heterónimo de Fernando Pessoa de quem se não conhece mais nenhuma produção. Estas notas que assina, com
uma técnica quase futurista de disposição e pontuação, seguem estranhamente próximo o tipo de raciocínio, forçosamente linear e de associações, de Alberto Caeiro. O conteúdo é, no entanto, mais de um gosto, ainda indiscriminado, a Álvaro de Campos. Não é uma composição de primeiro plano, nem como sentido poético nem como expressão estética. Porque não está datado, nada se pode concluir da sua feitura. O estar dedicado à memória de Alberto Caeiro pode apenas querer significar que a tal foi destinado à altura da publicação de Orpheu 3. Mais do que uma influência concreta de Alberto Caeiro, esta composição parece antes um quase e indistinto proto-Caeiro-Campos.



Más allá de otro océano

A la memoria de Alberto Caeiro

«Con un sentimiento febril de ser más allá de otro océano
Hubo posiciones de un vivir más claro y más límpido
Y apariencias de una ciudad de seres
No irreales mas lívidos de imposibilidad, consagrados en desnudez y pureza
Fui pórtico de esta visión inútil y los sentimientos eran sólo el deseo de tenerlos
La noción de las cosas fuera de sí las tenía cada uno dentro
Todos vivían en la vida de los demás
Y la manera de sentir estaba en el modo de vivirse
Pero la forma de aquellos rostros tenía la placidez del rocío
La desnudez era un silencio de formas sin manera de ser
Y hubo asombros de que toda la realidad tan sólo fuera eso
Pero la vida era la vida y sólo era la vida.

Mi pensamiento trabaja muchas veces en silencio
Con la misma suavidad de una máquina engrasada al moverse sin ruido
Yo me encuentro bien cuando así marcha y permanezco inmóvil
Para no deshacer el equilibrio que me ha llevado a tenerlo de este modo
Presiento que en aquel momento mi pensamiento es claro
Mas no lo oigo y en silencio rueda siempre mansamente
Cual máquina engrasada a la que mueve una correa
Y más no puedo oír que el deslizar sereno de las piezas que trabajan
Pienso a veces que todas las demás personas han de sentirlo tal como lo siento
Pero dicen que les duele la cabeza o que tienen mareos
Viene a mí este pensamiento como podría venir otro cualquiera
Como por ejemplo el de que ellos no sienten este deslizar
Y no piensan en que no lo sienten

En este viejo salón donde las panoplias de armas grises
Son la forma de un esqueleto con señales de otras eras
Paseo mi mirar hecho materia y hago que a escondidas destaque en las armaduras
Aquel secreto del alma que es la causa de mi vivir
Si fijo en la panoplia el mortificado mirar donde hay deseos de no ver
Toda la férrea estructura de ese esqueleto que sin saber por qué presiento
Se apodera de mi sentido como un relámpago de lucidez
Hay sonido en la igualdad de dos yelmos que me escuchan
De tan nítida la sombra de las lanzas marca la indecisión de las palabras
Dísticos de incertidumbre danzan sin cesar sobre mí
Escucho ya las coronaciones de unos héroes que habrán de celebrarme
Y sobre este vicio de sentir me encuentro en los mismos espasmos
De la misma polvareda gris de las armas con señales de otras eras

Cuando entro en un salón grande y desnudo a la hora del crepúsculo
Y todo es silencio tiene el salón para mí la estructura de un alma
Es impreciso y cubierto de polvo y mis pasos poseen unos ecos extraños
Como  los que retumban en el alma cuando yo camino
Entra la adormecida luz de fuera por sus ventanas tristes
Y proyecta en la oscura pared de enfrente las sombras y penumbras
Un salón grande y vació es un alma silenciosa
Y la polvareda que levantan las corrientes de aire son los pensamientos
Un rebaño de ovejas es una cosa triste
Porque tal vez no podamos asociarle más que ideas tristes
Y porque así es y sólo porque así es resulta verdadero
Que asociemos ideas tristes a un rebaño de ovejas
Por tal razón y sólo por tal razón las ovejas son tan realmente tristes

Robo por placer cuando me dan un objeto valioso
Y a cambio doy pedazos de metal. Tal idea no es común ni trivial
Pues la encaro de un modo diferente y no hallo relación entre un metal y otro objeto
Si comprara hojalata y les diera alcachofas me llevarían preso
Me gustaría oía a cualquiera exponer y explicar
El modo de poder dejar de pensar en pensar que se hace una cosa
Y así perdería el recelo que tengo de llegar a saber algún día
Que pensar en las cosas y pensar el pensar no pasa de ser una cosa material y perfecta

La posición de un cuerpo no es indiferente a su equilibrio
Y la esfera no es cuerpo pues carece de forma
Si así es y todos oímos un sonido en cualquier posición
Infiero que el sonido no debe ser cuerpo
Mas aquellos que saben por intuición que el sonido no es cuerpo
No han seguido mi razonar y por tanto la noción que yo doy no les sirve de nada

Cuando recuerdo que hay personas que lanzan las palabras para ejercer ingenio
Se ríen por eso y cuentan particulares casos del vivir de cada cual
Para aligerar su hastío y consideran que los payasos de circo son graciosos
Mas se incomodan si les cae una mancha de aceite en el traje nuevo
Me siento feliz de que haya tantas cosas que no entiendo
Veo en el arte de cada obrero una generación desvaneciéndose
Por eso no comprendo ningún arte pero veo tal generación
El obrero nada ve de esa generación en su arte
Y por eso es obrero y por eso conoce su arte

Muchas veces mi cuerpo me causa amargura
Sé que soy una cosa y porque no difiero de otra cosa cualquiera
Sé que las demás cosas han de ser como yo y tiene que pensar que yo soy una cosa común
Si por tanto es así yo no pienso sino creo que pienso
Modo éste de ponerme a resguardo que es bueno y me alivia

Amo las alamedas de árboles encorvados y sombríos
Y al caminar por las extensas alamedas a las que mi mirar da forma
Alamedas a las que mi mirar da forma sin que yo sepa cómo
Son puertas abriéndose en mi ser incoherente
Y son siempre alamedas lo que siento cuando el asombro de ser así me distingue

Muchas veces me oculto sensaciones y gustos
Y entonces varían y concuerdan con los de los otros
Pero yo no los siento e ignoro además que me engaño

Sentir la poesía es la manera figurada de vivirse
Si no siento la poesía no es porque no sepa qué es
Sino porque no puedo vivir de una manera figurada
De lograrlo tendría que buscar otro modo de ponerme a resguardo
La condición de la poesía es ignorar cómo puede ser sentida
Hay cosas bellas que son bellas en sí
Pero la belleza íntima de los sentimientos se espeja en las cosas
Y si las cosas son bellas no las sentimos

En la sucesión de pasos no puedo ver más que sucesión de pasos
Y se suceden como si lo viese sucederse realmente
Por el hecho de ser tan iguales a sí mismos
Y de no haber una sucesión de pasos que al cabo no lo sea
Veo cuán necesario es no equivocarnos acerca del claro sentido de las cosas
Tendríamos así que juzgar que un cuerpo inanimado siente y ve diferente que nosotros
Mas esta noción por demasiado admisible sería fútil e incómoda

Si al pensar podemos dejar de hacer movimientos y de hablar
¿Por qué necesitamos suponer que las cosas no piensan
Si esta manera de verlas es incoherente y fácil para el espíritu?
Lo que hay que suponer y éste es el camino verdadero
Es que pensamos por el hecho de poder hacerlo sin movernos ni hablar
Como hacen las cosas inanimadas

Cuando me siento aislado la necesidad de ser una persona cualquiera en mí aparece
Y se arremolina a mi alrededor en espirales oscilantes
Tal modo de decir no es figurado
Sé que se arremolina a mi alrededor cual mariposa alrededor de una luz
Veo en ella síntomas de cansancio y me horrizo cuando creo que se va a caer
Mas de tanto no caer sucede que estoy aislado a veces

Hay personas a quienes arañar las paredes impresiona
Y otras a las que no impresiona
Pero arañar las paredes es algo siempre igual
La diferencia está en las personas. Y si varían en ese sentir
Habrá diferencias personales al sentir otras cosas
Y cuando todos piensan lo mismo de una cosa es porque la cosa es diferente para cada uno

Memoria es la facultad de saber que hemos de vivir
Por tanto los amnésicos no pueden saber que viven
Pero son tan desdichados como yo y yo sé que estoy viviendo y que he de vivir
Un objeto alcanzado un susto que tenemos
Todo son maneras de vivir para los otros
Quisiera vivir y ser por dentro como son o viven los espacios

Cuántas personas se sientan después de comer en una mecedora
Se acomodan entre almohadas cierran los ojos y se dejan vivir
No hay lucha entre el vivir y las ganas de no vivir
O bien –lo cual es horrible para mí- si realmente hay lucha
Se matan pegándose un tiro tras haber escrito algunas cartas
Es tan absurdo dejarse vivir como hablar en secreto

Los artistas de circo son superiores a mí
Porque saben hacer el pino y dar saltos mortales a caballo
Y los saltos los dan sólo por darlos
Y si yo diera un salto tendría que saber por qué lo daba
Y si no lo diese me pondría triste
Ellos son incapaces de decir cómo los dan
Pero saltan como sólo ellos saben
Sin haberse preguntado nunca si saltan realmente
Porque yo cuando veo una cosa
Nunca sé si sucede y no puedo saberlo
Sólo sé que para mí es como si sucediera pues la veo
Mas no puedo saber si veo cosas que no ocurren
O que si por verlas debo suponer que suceden

Un ave siempre es bella porque es ave
Y las aves siempre son bellas
Pero un ave sin plumas es tan repugnante como un sapo
Y en un montón de plumas no hay belleza
De este hecho en sí tan desnudo yo no sé inducir nada
Pero siento que debe haber en él una verdad muy grande

No puede ser igual lo que pienso una vez a lo que pienso otra vez
Y de este modo vivo para que los demás sepan que viven

A veces veo cómo trabaja un cantero junto a un muro
Y su modo de existir y de poder ser visto siempre difiere de lo que juzgo
El cantero trabaja y hay una incitación dirigida que mueve sus brazos
¿Cómo sucede que trabaje por una voluntad que lo incita
Y yo no trabaje ni tenga ganas de incitarme
Y no pueda entender esa posibilidad del cantero?
Nada sabe él de estas verdades y no es más feliz que yo ciertamente
En alamedas de otros parques al pisar hojas secas
Sueño a veces que soy para mí y que he de vivir
Mas nunca pasa este verme ilusorio
Porque al fin me veo en las alamedas de ese parque
Pisando las hojas secas que me escuchan
Si pudiese al menos oír el crujir de hojas secas
Sin que fuera yo quien las pisa o sin que ellas me viesen
Pero las hojas secas se arremolinan y tengo que pisarlas
Si al menos en estar travesía tuviese a otro como todo el mundo

Una obra prima no pasa de ser una obra cualquiera
Y por tanto una obra cualquiera es una obra prima
Si este razonamiento es falso no es falso el deseo
Que tengo de que sea de hecho verdadero
Y para los usos de mi pensar tanto me basta

Qué importa que una idea sea oscura si es idea
Y una idea no puede ser menos bella que otra idea
Pues no puede haber diferencia entre dos ideas
Y eso es así porque yo veo que esto tiene que ser así
Un cerebro soñado es el mismo que piensa
Y los sueños no pueden ser incoherentes porque no pasan de ser pensamientos
Como los demás. Si veo a alguien que me mira
Sin querer empiezo a pensar como toda la gente
Y eso me duele tanto como si me marcaran el alma con un hierro candente
Pero cómo puedo saber el dolor de marcar el alma con un hierro candente
Si hierro candente es una idea que no entiendo
El descarrío de mis virtudes me conmueve
Me aflige el sentir que cuando quiera puedo advertir su ausencia
Quisiera que me llenaran las virtudes de la apetencia
Mas tan sólo para poder gozar y poseerlas y ser mías
Hay personas que dicen sentir el corazón despedazado
Y ni siquiera vislumbran lo bueno que sería
Sentir que nos están despedazando el corazón
Cosa que no se siente nunca
Pero no es ésta la razón por la que sería una felicidad sentir el corazón despedazado

En un salón noble de penumbra donde hay azulejos
Donde azulejos azules colorean paredes
Donde el suelo es oscuro y pintado y con esteras de yute
Me adentro a veces coherente en exceso
Soy en aquel salón como cualquier persona
Pero el entarimado es cóncavo y las puertas no ajustan
La tristeza de los montantes crucificados en los vanos de puerta
Es una tristeza desnivelada hecha de silencio
Por las ventanas reticuladas entra la luz cuando es de día
Empañada por vidrios de montantes y recogida en los rincones cual montón de negrura
Corrientes de aire frío recorren a veces los extensos pasillos
Mas huele a barnices viejos y agrietados en cada rincón de los salones
Y todo es dolorido en este solar de antiguallas

Me alegra a veces momentáneamente el pensar que he de morir
Y que me encerrarán en una caja de madera con olor a resina
Mi cuerpo se derretirá en espantosos líquidos
Las facciones se desharán en varias podredumbres coloridas
E irá asomando por debajo la calavera ridícula
Muy sucia y muy cansada haciendo guiños»

Poesía
(versión de José Antonio Llardent)

Fernando Pessoa